O governo [dos EUA] agora olha para a maioria do colectivo de cidadãos por trás de um espelho totalmente opaco dum só sentido. Os perigos devem ser óbvios. Por Glenn Greenwald, Salon
Uma das marcas distintivas de um governo autoritário é a sua fixação em esconder tudo o que faz por trás dum muro de secretismo, simultaneamente controlando, invadindo e coligindo ficheiros sobre tudo o que o seu coletivo de cidadãos faz. Baseado no aforismo de Francis Bacon de que "conhecimento é poder," isto é o desequilíbrio extremo que deixa a classe governante omnipotente e os cidadãos sem poder.
No The Washington Post de 23/12, Dana Priest e William Arkin continuam a sua série "Top Secret America" descrevendo como o Estado de Vigilância vasto e crescente na América agora abrange entidades policiais estatais e locais, reunindo e armazenando montantes sempre crescentes de informação inclusive sobre as atividades mais inócuas empreendidas por cidadãos que não são suspeitos de qualquer má conduta. Como foi verdade para as várias primeiras prestações do seu "Top Secret America", não há qualquer revelação especialmente nova para os que prestam atenção a tais assuntos, mas o quadro que pinta – e o fato de que é apresentado num órgão do sistema estabelecido como o The Washington Post – é contudo valioso.
Hoje, os repórteres do Post documentam como a vigilância e os métodos de policiamento usados pela primeira vez nas guerras e ocupações no estrangeiro pela América estão a ser rapidamente importados para a vigilância interna (scanners de impressões digitais sem fios, câmaras de infravermelhos de nível militar, scanners biométricos de rosto, drones sobre a fronteira). Em suma:
As unidades de operações especiais preparadas para o estrangeiro para matar a liderança da al-Qaeda conduziram a avanços tecnológicos que se estão a expandir agora no uso pelos Estados Unidos fora. Nas linhas da frente, aqueles avanços permitiram a fusão rápida de identificação biométrica, registos de computador apanhados e números de telemóveis para que as tropas possam lançar o ataque de surpresa seguinte. Cá dentro, é o Departamento de Segurança Interna que está enamorado pela recolha de fotos, imagens de vídeo e outra informação pessoal de residentes dos Estados Unidos, na esperança de destrinçar os terroristas.
Entretanto, o Departamento de Segurança Interna de Obama alargou rapidamente o alcance e invasividade dos programas de vigilância internos – o que foi justificado, obviamente, em nome do terrorismo:
[A Secretária do DSI Janet] Napolitano levou a campanha "Vêem algo, digam algo" muito para além dos sinais de tráfego que pedem aos condutores a entrar na capital da nação que dêem "Dicas sobre o terror" e "Informem sobre atividades suspeitas".
Recentemente ela alistou a ajuda da Wal-Mart, da Amtrak, das principais ligas desportivas, de cadeias de hotéis e de passageiros do metro. Nos seus discursos, compara o empreendimento à luta da Guerra Fria contra os comunistas.
"Isto representa uma viragem no nosso país", disse aos agentes da polícia e bombeiros da cidade de Nova York na véspera do aniversário do 11 de Setembro este Outono. "De certo modo, isto leva-nos ao tempo em que nos baseávamos na tradição da defesa civil e num estado de preparação militar que antecederam as preocupações de hoje."
Os resultados são previsíveis. Enormes quantias de dinheiro do 11 de Setembro e do anti-terrorismo inundaram entidades estatais e locais que não enfrentam praticamente nenhuma ameaça de terrorismo e elas usam esses fundos para comprar tecnologias – compradas à indústria do setor privado que controla e operacionaliza programas de vigilância do governo – para de forma grandemente aumentada monitorizar e manter arquivos sobre cidadãos comuns que não são suspeitos de qualquer má conduta. A cooperação sempre crescente entre entidades federais, estatais e locais – e entre e dentro das entidades federais – fez eclodir bases de dados maciças com informação contendo as atividades de milhões de cidadãos americanos. "Há 96 milhões de conjuntos de impressões digitais" na base de dados da agência do FBI, relata o Post. Além disso, o FBI usa o seu programa de "registo de atividades suspeitas" (SAR) para reunir e fornecer quantidades sem fim de informação sobre americanos inocentes.
Ao mesmo tempo que o FBI estende a sua base de dados de West Virginia, está a construir um vasto repositório controlado pelas pessoas que trabalham numa caixa-forte secreta no quarto andar do edifício J. Edgar Hoover do FBI em Washington. Este armazena os perfis de dezenas de milhares de americanos e residentes legais que não são acusados de qualquer crime. O que fizeram foi parecer estar a atuar de modo suspeito a um xerife duma cidade, a um polícia de trânsito ou até a um vizinho.
Para se ter uma ideia do tipo de informação que acaba por ser armazenada – baseada na conduta mais inócua – leia-se esta página do seu artigo que descreve o Relatório Nº 3821 de Atividades Suspeitas. Mesmo o FBI admite o enorme desperdício que tudo isto é – "'noventa e nove por cento não produz resultados nem leva a nada' disse Richard Lambert Jr., o agente especial encarregado da agência de Knoxville do FBI" – mas, como a história conclusivamente prova, os dados coligidos sobre os cidadãos serão usados para alguma coisa mesmo que não revelem nenhuma criminalidade.
Para entender a amplitude do Estado de Vigilância, lembre-se esta frase do artigo original de Priest/Arkin: "Todos os dias, os sistemas de recolha de dados da Agência de Segurança Nacional interceptam e fornecem 1,7 biliões de mensagens de correio electrónico, telefonemas e outros tipos de comunicações". Como Arkin e Priest documentam hoje, há pouca salvaguarda em relação a como todos estes dados são usados e abusados. Os departamentos de polícia locais encontram-se por rotina com grupos neo-conservadores que insistem que todas as comunidades muçulmanas no país são uma ameaça potencial e que devem ser submetidas a vigilância intensiva e a infiltração. Grupos envolvidos em oposição claramente legal e autorizada foram submetidos a esses programas de vigilância do governo. O que temos, em suma, é um estado de vigilância vasto, incontrolado e cada vez mais invasivo que sabe e reúne cada vez mais a informação sobre as atividades de cada vez mais cidadãos.
Mas o que faz tudo isso especialmente ameaçador é que – como o conflito da WikiLeaks demonstra – tudo isto tem lugar ao lado dum muro de secretismo sempre a expandir-se, atrás do qual a própria conduta do Governo é escondida da vista do público. Considere-se apenas a reação do Governo às revelações de informação da WikiLeaks que até ele – em momentos de sinceridade – reconhece não terem causado nenhum verdadeiro dano: informação revelada que, criticamente, foi protegida com designações de segredo de nível relativamente baixo e que (em contraste com os Papéis de Pentágono) não foi designada "Top Secret".
É claro como a água que o Departamento de Justiça está envolvido numa cruzada total para compreender como encerrar a WikiLeaks e prender Julian Assange. Está a submeter Bradley Manning a condições inacreditavelmente desumanas para manipulá-lo para que forneça o testemunho necessário para levar Assange a tribunal. Lembre-se que em 2008 – muito antes que alguém até soubesse sequer o que a WikiLeaks era – o Pentágono secretamente conspirou sobre como destruir a organização. No Meet the Press de ontem, perguntaram a Joe Biden se ele concordava mais com a afirmação de Mitch McConnell que Assange é "um terrorista de alta tecnologia" do que com os que se comparam a WikiLeaks com Daniel Ellsberg e o Vice-presidente respondeu:
"Eu argumentaria que está mais próximo de ser um terrorista de alta tecnologia...". "Um terrorista de alta tecnologia". E considere-se este pequeno ensaio pernicioso de Eric Fiterman – um antigo agente especial do FBI e fundador de Methodvue, "uma empresa de consultoria que fornece cibersegurança e o serviços de investigação criminais computorizados ao governo federal e a empresas privadas" – que claramente reflecte a visão do Governo sobre a WikiLeaks.
No caso WikiLeaks, um grupo marginal dirigido principalmente por estrangeiros a operar fora do país está a obter, rever e disseminar ilegalmente informação sobre espionagem americana com a intenção declarada de prejudicar os Estados Unidos (o próprio fundador da WikiLeaks Julian Assange fez esta declaração). Isto não só vai ao encontro da definição de atividade agressiva, hostil e bélica, mas de forma directa visa posições diplomáticas da América e interesses de espionagem infligindo danos colaterais às nossas instituições financeiras e aos fornecedores de serviços que cortaram relações com a WikiLeaks. Isto, minha gente, é guerra.
Esta é a mentalidade do governo dos Estados Unidos: tudo o que faz com qualquer significado pode e deve ser protegido da vista do público; quem quer que lance luz sobre o que faz é um Inimigo e deve ser destruído; mas nada do que fazemos deve estar para além dos seus olhos de monitorização e armazenamento. E o que é o mais notável nisto – embora não surpreendente, dado o completo consenso bi-partidário sobre isto – é o modo ansiosamente submisso como a maior parte do colectivo dos cidadãos está face a este desequilíbrio. Muitos americanos suplicam ao seu governo em uníssono: exigimos que saibam tudo sobre nós mas que nos mantenham ignorantes sobre o que fazem e punam os que no-lo revelem. Muitas vezes, esta espécie opressiva de Estado de Vigilância tem de ser forçosamente imposta a um colectivo de cidadãos resistentes, mas a maior parte do colectivo de cidadãos americanos assustados – dirigido pelas figuras dos meios de comunicação que mais odeiam a transparência – foi treinado com uma corrente sem fim de promoção do medo para exigir serem submetidos a cada vez mais medo.
Obviamente, cada estado é necessariamente autorizado a exercer poderes que os cidadãos privados são proibidos de exercer eles mesmos (os governos podem pôr legalmente pessoas em jaulas, mas se um cidadão privado o fizer isso constitui um crime: rapto e falsa detenção). Mas o desequilíbrio tornou-se tão extremo que – o governo agora olha para a maioria do colectivo de cidadãos por trás dum espelho totalmente opaco dum só sentido – os perigos devem ser óbvios. E tudo isto deveria ser precisamente ao contrário: os funcionários do governo é que devem operar às claras, enquanto os cidadãos comuns têm direito à privacidade. Contudo invertemos esta dinâmica quase por completo. E mesmo depois do 11 de Setembro, há já 9 anos atrás, as tendências continuam num só sentido. A WikiLeaks é uma das muito poucas entidades que subverteram este esquema com sucesso, razão pela qual – do ponto de vista do governo e seus apoiantes – deve ser parada a qualquer preço.
ATUALIZAÇÃO: Dois pontos relacionados:
(1) Joe Biden não só votou a favor da Guerra do Iraque como foi Presidente do Comité de Relações Externas em 2002 no momento em que o Senado autorizou aquele ataque, ataque que resultou na morte de bem mais de 100.000 seres humanos inocentes e que foi lançado sob a bandeira estratégica do "Choque e Pavor," concebido explicitamente para aterrorizar iraquianos para que não resistissem através do uso de exposição maciça da devastação urbana. Julian Assange nunca autorizou qualquer violência, nunca matou ninguém, nunca defendeu que se matasse alguém, e nunca ameaçou ninguém de morte. Contudo o primeiro pode acusar o segundo de ser quase "um terrorista de alta tecnologia" sem que muitas pessoas pisquem um olho – ilustrando, mais uma vez, que o termo "terrorismo" não tem sentido e é manipulado; se é que significa algo, a sua definição é esta: "os que impedem ou desafiam a vontade americana com algum grau de eficácia".
(2) De todos os abusos do estado de vigilância, um dos mais flagrantes é certamente a apreensão sem mandato e cega de computadores portáteis e outro equipamento electrónico feita pelo governo a cidadãos americanos na fronteira, pela qual não só armazenam os conteúdos daqueles dispositivos como às vezes guardam os itens apreendidos indefinidamente. Essa prática está a tornar-se cada vez mais comum, dirigida a gente que não fez mais do que discordar da política do governo; pretendo escrever mais sobre isto em breve. Se os cidadãos americanos não objectam à apreensão permanente e à cópia dos seus computadores portáteis e telemóveis sem qualquer mandato ou supervisão judicial, a que objectariam alguma vez?
Tradução de Paula Sequeiros para o Wikifugas
Esquerda.net
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